
Atendimento de crianças online: contribuições
27 de maio de 2020
Depois que as pessoas descobriram que eu estava atendendo crianças online começaram a fazer várias perguntas sobre como fazer. Então resolvi escrever esse post.
O que eu fiz?
1. Trouxe toda minha bagagem de pensamentos e práticas sobre infância, subjetividade, desenvolvimento e psicoterapia infantil.
Se vc já atende crianças presencialmente provavelmente já tem pensamentos e práticas sobre o sentido do atendimento, o como fazer, sobre o lugar do brincar, a relação com os responsáveis, o desenvolvimento do processo, etc. etc. etc.
2. Saí por aí clicando em todos os vídeos, textos e posts de amigxs e desconhecidxs pra saber como as pessoas estavam fazendo e ter idéias de que tipos de brincadeiras, atividades e trocas têm funcionado nas videoconferências.
Essa parte foi difícil porquê eu procurava especificamente por primeira sessão online com uma criança, que era o que eu precisaria fazer e estava insegura; achei coisas sobre psicoterapia infantil e sobre atendimento infantil online, mas não sobre primeira sessão, então fui costurando minha colcha de retalhos.
3.Anotei TODAS as ideias de jogos e brincadeiras que vi por aí. Algumas delas:
leitura de livros
contação de histórias
desenhar
mímica
jogo de forca
jogo da velha
stop
associação de palavras
adivinhação de desenhos
vivo ou morto
o mestre mandou
eu fui pra lua
fui pra feira e levei...
duas verdades e uma mentira
4. Agi o mais parecido possível com como eu sou no consultório presencial, porém os materiais mudaram bastante (ficaram mais restritos) e as possibilidades de brincadeiras, vivências e trocas um tanto mais limitados (sem a sensação do contato físico e do olho no olho, sem a proximidade ou a distância que uma sala permite, sem os desafios dos interesses múltiplos e de como ir brincando e arrumando o espaço, sem acontecimentos que muitas vezes envolvem contato físico entre os brinquedos, a aproximação corporal, contenção, acolhimento gestual, etc). E ao mesmo tempo potencializando a força da imaginação, das histórias lidas, ouvidas e inventadas e mesmo de uma troca maior com palavras mesmo com crianças menores.
Compartilho com vocês um pouco do meu primeiro atendimento online com uma criança que ainda não conhecia.
O COMEÇO
Quando chega a demanda de um atendimento de criança costumo marcar uma primeira conversa com os responsáveis e sem a criança presente. Faço isso pois me ajuda a compreender a demanda, que pedido é esse, de onde vem, me ajuda a compreender um pouco de como é aquela criança naquela relação, me ajuda a pensar qual o processo que está em jogo ali (embora seja um ponto de partida, pois o processo se dá ao longo dele mesmo) e a me preparar para nosso primeiro encontro. Essa conversa com os responsáveis pode acontecer em uma sessão ou em quantas foram necessárias. E só depois inicio o trabalho com a criança. Para o atendimento online achei valioso manter esse procedimento. Além disso, tem sido fundamental nessa conversa para o atendimento online construir com os responsáveis a importância do lugar, dos materiais e dos preparos para o encontro. Se a criança sabe usar o celular sozinha ou se algum adulto precisa preparar o espaço e dispor o celular num lugar onde a criança consiga ficar confortável e fique visível na câmera. Um lugar onde seja possível fechar a porta e a criança ficar sozinha e sua intimidade preservada para estar a sós com a terapeuta (se a criança for muito pequena pode ser que seja necessário um adulto bem perto, se possível do outro lado da porta ou ainda um adulto junto no atendimento). Preparar o ambiente do atendimento na casa da criança: separar e dispor de forma visível e organizada no ambiente materiais que a criança possa usar no atendimento, principalmente papel e lápis, mas a depender da idade brinquedos, massinha, jogos, livros, etc.). O ambiente da criança não precisa mudar de um atendimento pro outro (a não ser que seja algo pontual) para facilitar esse preparo para os responsáveis.
O PRIMEIRO CONTATO
Sem planejar, enquanto se iniciava a primeira sessão pensei: como seria se eu estivesse no consultório? O que eu faria quando recebesse a criança na sala pela primeira vez? Me lembrei que ela entraria na sala, que ela veria os materiais todos dispostos numa arrumação prévia que escolho a partir de quem é aquela criança, da idade que tem, das brincadeiras e temas que ela costuma gostar (conversados previamente com os responsáveis). Lembrei que haveria os brinquedos de uso coletivo e aqueles que eu escolhi exatamente pra ela e que ficariam numa caixa feita para ela ou uma pasta. Assim, inventei uma chegada no consultório que depois acabou se tornando o modo oficial de receber uma criança em todos os encontros no meu consultório-online. Contei para aquela criança que geralmente nos encontramos pessoalmente, numa sala, lá no meu consultório. E que agora não estávamos fazendo isso, porque afinal, tem um vírus, que traz uma doença e agora as pessoas têm ficado mais em casa. Agora minha casa era o consultório. Então eu iria mostrar pra ela o que preparei para nosso encontro. Peguei o celular e fui mostrando tudo que havia preparado: o lugar onde sento, um altar com plantas e pedras que me acompanha em todos os trabalhos, minha pasta onde guardo muitas anotações, fui mostrando cada livro que separei, todos com as capas visíveis organizados ao meu redor, mostrei o livro das emoções, o livro das mentiras, o livro dos porquês, o livro do Iauaretê, o livro dos mistérios da Pindorama, alguns outros livros que escolhi especificamente para aquela criança (uns 5 livros), mostrei os cartões das emoções, uma história que tinha escrito à mão, um jogo incrível com cartas com desenhos belíssimos que uso bastante (com crianças e adultos), um bloquinho de papéis com ideias de brincadeiras, um bloquinho de papéis em branco para usarmos se quiséssemos, lápis e lápis de cor, o lugar onde apoio o celular e pronto. Para essa criança, especificamente, não havia bonequinhos, bonecas ou bichos pois não achei necessário devido à idade, mas para os mais novos eles também estão presentes. Assim, hoje, a cada nova sessão eu começo falando "vamos ver como está o consultório hoje?... Mais ou menos igual sempre né" e reapresento cada coisa (quase como se fosse a primeira vez) e por último mostro a novidade do dia, sempre tem alguma que surgiu de uma ideia/necessidade advinda ao longo do processo!
A GRANDE PERGUNTA: O QUE A CRIANÇA SABE DO PORQUÊ ELA ESTÁ ALI?
Lembrei que gosto muito de começar o primeiro encontro com muita observação, aguardando as iniciativas da criança e estando presente e disposta ao que ela trouxer. Vou acompanhando sua perambulação pela sala e num contato leve e descontraído vou sentindo quando acho oportuno perguntar se ela sabe porque está ali. Pode ser que isso ocorra no início da sessão, mas não sempre; às vezes a criança explora e brinca e só depois de um tempo, ainda na primeira sessão, temos essa conversa. No atendimento online esse assunto continua sendo importante e nessa história que estou contando pra vocês também foi assim.
O BRINCAR, AS HISTÓRIAS E A RELAÇÃO TERAPÊUTICA
O brincar é mais complicado mesmo, são muitos poréns, faltas, diferenças. O não estar presencial muda o modo de acolher, de conter, de escutar e mesmo de falar, muda também o jeito de brincar. Daí são inúmeros aprendizados a cada sessão... De qualquer maneira, comecei perguntando o que ela tinha achado do consultório, se tinha alguma coisa que chamava atenção ou que deu vontade brincar. Perguntei também se ela tinha ideias de brincadeira e se queria propor algo para fazermos juntas. Ela escolheu o jogo das cartas, presente na maioria das sessões e a cada sessão reinvento um jeito de usar o jogo, geralmente associado a invenção de histórias. Tiramos 3 cartas, sem olhar, e inventamos uma história. Tiramos uma carta, uma emoção das cartas das emoções e uma palavra que veio na cabeça e inventamos uma história. Lemos um livro e depois fazemos um desenho. Lemos um livro e depois brincamos de associação livre sobre a história. Ou, eu falo uma palavra e você fala outra sem pensar! Enfim, vários recursos com histórias, imaginação, desenhos e palavras que têm sido muito presentes nos atendimentos. Já jogamos forca e depois inventei de criarmos uma história com as palavras usadas no jogo. No atendimento online, até mais do que o presencial, tenho gostado de fazer as brincadeiras de forma recíproca: nós dois desenhamos, nós dois contamos histórias, nós dois inventamos palavras pra brincar de forca. Não que isso seja uma regra, mas no atendimento presencial essa reciprocidade às vezes é menos necessária porque nosso corpo já está ali e a presença funciona como troca mesmo que não façamos as mesmas coisas. No atendimento online - com o corpo à distância - o fato de nós duas fazermos uma certa coisa traz uma aproximação e também contribui na sustentação da relação terapêutica. Também costumo dizer para a criança que se ela tiver ideias, brinquedos, brincadeiras, livros, ela também pode trazer para o encontro.
PROCESSO TERAPÊUTICO
Tudo isso que escrevi são elementos práticos para criarmos um modo de atendimento de crianças que seja online. Mas o processo terapêutico exigiria uma escrita mais cuidadosa e mais fundamentada em embasamentos teóricos, que não é a proposta desse texto. Vale dizer que escolhi me preparar com o máximo de possibilidades para o fazer online, mas eu os uso conforme sinto necessidade. E, de maneira geral, o que senti, é que as mil e uma materialidades e ideias que pesquisei não têm sido tão essenciais (por isso mesmo não listei todas elas lá em cima). Cada um tem seu estilo e sinto que se você já é uma psicóloga ou psicólogo com prática em atendimento infantil, vale se armar com tudo que encontrar, mas o mais valioso é sua sensibilidade para saber quando propor uma certa brincadeira ou utilizar um material, não é a quantidade de ideias ou de atividades pré-definidas que mede a qualidade do seu trabalho e sim sua escuta, a criação de uma relação de confiança com a criança, a sustentação das emoções que vierem, as análises que você vai fazendo e que servem de norteadores pro preparo do encontro e sua condução diante dos desafios que se dão no tempo presente de uma sessão.
Sigo à disposição para conversas sobre o assunto, sintam-se à vontade para me escrever ;)